quinta-feira, 25 de outubro de 2018

CESTA DE MAÇÃS

Fumo e bebo em busca do êxtase.
Nada se cria venerando Apolo.
Meu sangue é música e sexo.
Cigano, tenho por prisão o meu trabalho.
Burocrata, dignifico o capital.
Ah! a grande noite cai sobre a liberdade,
e ela é tão pesada.
A burguesia não apenas fede, ofende e mata.
As morais religiosas me causam vômitos, às vezes risos.
Mas prefiro os vômitos.
Por que devo assinar um contrato de fidelidade?
Amo o meu amigo sem precisar ir ao cartório.
A monogamia é monótona pra caralho.
E na monogamia o caralho não sobe.
O tempo não para, mas o relógio sim.
Por que não bate logo as dezoito horas?
Chega de renascimentos,
que venha rápido a imperfeição.
Raul, hoje comprei uma cesta de maçãs.
O ruim é esta sensação de culpa,
herdada das lições de cristianismo;
uma azia constante
e a porra da gordura no fígado.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

MANUAL DO HOMEM COMUM

Falar baixinho,
incessantemente,
pois é tão agradável aos ouvidos e à percepção.
Sorrir, que é mostrar a alma ao próximo.
Dar bom dia,
o que tem a força de mil vulcões.
Olhar nos olhos e se ver no outro:
o outro vendo-se em você.
Ceder a vez,
sempre que necessário:
a pressa é inimiga da pressão.
Não ter certezas,
pois são tantas as dúvidas
e é tão grande o ego.
Ser tolerante, uma utopia?
Sejamos teimosos,
tentemos ao menos.
Respeitar os idosos,
que são mais sábios que nós
e o nosso reflexo daqui a instantes.
Indignar-se com a injustiça,
pois a ganância de poucos a alimenta.
Odiar as bombas que nada constroem.
Amar as flores que enfeitam nossos olhos.
Acariciar o cão
com a mesma intensidade com que eles nos acariciam.
Emocionar-se com uma velha canção
regressando ao passado
e tornando o presente dançante.
Compartilhar os livros,
pois fechados os mesmos apodrecem
qual o alimento não consumido.
Escutar, ouvir,
que são sinônimos de sabedoria.
Se preciso, opinar, sem pressas, sem vaidade.
Não reter conhecimentos qual um muquirana.
Amar, até as últimas consequências, a paz,
que tudo constrói.
Evitar, até a morte, a guerra,
que é sinônimo de mortes.
Plantar e dividir o fruto com o próximo.
Regar comunitariamente.
Colher junto com outras mãos
e assim formar uma corrente que liberta.
Soltar os pássaros das gaiolas
e vê-los bailar sob a liberdade.
Libertar os animais dos circos e zoológicos,
que como nós, odeiam as prisões.
Respeitar as diferenças:
sempre, incansavelmente, obstinadamente.
Ser uno, mas divisível.
Ser paradoxal, mas convergente.
Ouvir Beethoven e Spock.
Amar os gays e os não gays.
Ser feminista,
indo ao encontro afável de nossa metade mulher.
Ser negro, índio, amarelo
e buscar na miscigenação o orgulho de sermos iguais.
Ser deficiente,
e na medida do possível cooperar com a sociedade.
Um pedido pessoal:
abram as portas dos banheiros aos cadeirantes:
dos bares, dos hotéis, dos motéis,
afinal também somos boêmios, viajantes e amantes.
Ler que é viajar com o pensamento.
Inventar,
buscando a excelência do servir
a quanto mais gente melhor.
Viver,
pois não temos outra saída
e às vezes é bem gozoso.
Dar as costas às culpas e aos pagamentos,
excluindo as cobranças das religiões e dos banqueiros.
Não temer a morte
que é o caminho reto da vida.
Não temer,
principalmente,
a plenitude da vida em acolhimento.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

POUCAS COISAS BASTAM

Poucas coisas bastam:
eu, você, um beijo, uma canção,
a noite, o vinho, o êxtase.

Poucas coisas bastam?
Um amigo, um poema, saúde, educação,
o pão, a arte, a justiça.

Poucas coisas bastam:
sorrisos, abraços, flores,
uma mão, caminhadas, crianças, o campo.

Poucas coisas bastam?
Sim, o socialismo!

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

CINQUENTANOS

Quem é este que me olha do espelho
às seis da manhã
com os olhos ainda encharcados de sono?

De repente brincava de pião com os amigos de infância,
agora vejo, no reflexo do espelho, um homem cansado e incrédulo:
a face com rugas em que navegam sonhos não realizados.

O rosto no espelho me olha e pergunta-me quem sou.
Ontem, menino enamorado de minha primeira paixão,
hoje, avô e pai do meu pai a quem vejo, cada vez mais, em mim mesmo.

Espelho, por que não me avisaste que os anos passavam sem que eu percebesse?
Como? Me dizes que dia a dia me mostrasses o meu caminho sem volta?
Não vi, não percebeste? E o espelho sorrindo: “Agora é tarde! Agora é tarde!”.