domingo, 28 de dezembro de 2014

REFLEXO NO ESPELHO OU ITINERÁRIO PARA UM DESCONHECIMENTO


O meu quarto são quatro paredes brancas

me refugio.

fora, os ruídos,
as inacabáveis batalhas pela vida.

Eu continuo ferido,
enquanto a morte não vem.

Lembranças da infância cada vez mais nebulosas
e distantes.

A fumaça do cigarro do homem
que está ao meu lado,
nesta gravura na parede,
incomoda-me os pulmões.

Repetem-se os sons
como a repetição da vida,
nas tempestades de ânimos em que se afundam
meus navios.

Busco-me
- como busca o sol a trepadeira,
minha língua, tua língua,
o suicídio, o aposentado –
nos meus livros empoeirados
como um mágico à fantasia de espelhos,
noites, beijos e bombas,
sons, cores e seres.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A CARNE

Khalil Gibran

Paixões da carne a queimar feito o fogo da Inquisição,
feito as bombas de napalm nos Vietnãs.

Teu corpo aberto no meu corpo,
dois corpos e um só dono desejo.

Noites,
lembranças,
teu cheiro,
insônia, copos de vinho barato
e essa música de violino que nada me lembra ou diz.

Carnes frescas e frias
como a desse bife sangrando
ou as tuas carnes febris e tensas
como fios elétricos, choques
e descargas.

O amor em teu corpo de formas enxutas
e essa toalha de feltro
pendurada na parede no banheiro.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

MEU PAÍS

"O céu é o meu tecto, a terra minha pátria e a liberdade a minha religião." (ditado cigano)

Da janela do meu apartamento
        Vejo meu país 
Mês de setembro, a chuva cai forte,
frente fria vinda de São Paulo,
segundo andar.

Escuto vozes:
Simone, Gal, Elis.
Mas também as vozes dos operários
       que pedem salários melhores,
       mães que choram por leite para seus filhos,
vozes fracas que pedem justiça e pão.

E, nas tardes imensas como desertos,
             em que a certeza do tédio
             é pior do que a da morte,
o tempo muda
parecendo mais lento
como o calor ou a tortura. 

Exilo-me
nas cavernas de minhas cáries,
no salário de funcionário público federal,
             a alma mofando entre velhos arquivos
             de papéis e desejos
e a vida lá fora a correr sob o sol.


sábado, 13 de dezembro de 2014

LUTA CORPORAL


Meu esquálido corpo paralítico
sente a falta do teu corpo,
faminto,
feito peste.

E a guerra que se trava
sob o intenso bombardeio de nossos
hálitos
deixa saldo terrível:
corpos suados e exaustos.

Teus peitos esféricos de moça
ferem minha língua sôfrega de prazer.

Através do teu e do meu suor
sorvemos um ao outro.

Os pêlos freneticamente arrepiados
são ervas daninhas,
são árvores,
floresta a ser derrubada a machado,
a unha de bicho,
a sopro de Deus.

Mas sob o ruído de ratos
que se amam como nós,
num desesperado esforço de esgotamento físico,
sinto vontade de te roer as entranhas.


segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

POMAR


Os amantes se amam.
Mas nem sempre aos amantes
é permitido se amar.
Os amantes são frutos proibidos. 


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CANTO LATINO-AMERICANO


"Porque longe das cercas embandeiradas que separam
quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador."
(Raul Seixas - "Ouro de tolo")

Nossas línguas não são unas,
nossos sentimentos são separados
por fronteiras, bandeiras, hinos.

Mas temos laços:
       sofremos igualmente,
       nossos medos são os mesmos,
       nossos desejos, iguais,
       nossas crianças morrem da mesma fome.